Pular para o conteúdo Vá para o rodapé

MEMÓRIAS DE QUARENTENA 31: QUANDO A ESPERANÇA EQUILIBRISTA NOS APONTA PARA A LUTA QUE TEM QUE CONTINUAR

Dilmar Miranda (Professor da UFC)

Logo que soube da morte de Aldir Blanc em 04 de maio, decorrente da Covid-19, o compositor João Bosco, tomado pela emoção, disse que ele, João, não existiria na Música Popular Brasileira, se não fosse seu parceiro. Poderíamos certamente acrescentar que, sem Aldir, a riqueza da nossa MPB não seria a mesma. Episódios históricos, como a Revolta da Chibata (1910), reverenciada em “Mestre-sala dos mares”, um tributo ao seu líder, o marujo João Cândido; cenas do cotidiano do povo brasileiro como “Rancho da Goiabada” em homenagem aos boias frias; o romantismo de todos nós, em “Dois pra lá, dois pra cá, ou em “Suave veneno”, nada parecia escapar à sua sensibilidade poética. Com todo mérito, a Lei de Emergência Cultural, aprovada pelo Congresso Nacional, foi batizada Lei Aldir Blanc pela sua relatora, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), com o objetivo de subsidiar artistas e espaços culturais nesses tempos de pandemia.

Coautor de mais de 500 canções com cerca de 50 parcerias, Aldir tornou-se certamente um dos maiores poetas da nossa arte musical popular. Se teve muitos parceiros – como Cristóvão Bastos, Guinga, Maurício Tapajós, Carlos Lyra, Moacyr Luz e outros – sem dúvida, a parceria mais marcante foi com João Bosco. Esta surge no início dos anos 1970, no ambiente do Movimento Artístico Universitário, um grupo da cena musical do Rio de Janeiro, com Ivan Lins, Gonzaguinha, Taiguara, Cesar Costa Filho e outros, e que irá proporcionar o encontro dos dois: o mineiro João e o carioca Aldir. Antes, ele já revelara seu talento com a letra da canção “Amigo é pra Essas Coisas”, com Silvio da Silva Jr, obtendo o 2º lugar no Festival Universitário de 1970.

Em 1972, sua parceria com João Bosco ganha destaque, com a canção “Agnus Sei”, devido a um fato curioso. Lançada no lado B do compacto do jornal alternativo O Pasquim, a canção faz companhia à inédita Águas de Março no lado A, interpretada pelo seu autor, o já consagrado Tom Jobim. No mesmo ano, a dupla apresenta várias canções à cantora Elis Regina, que irá incluir “Bala com Bala” no seu LP Elis. A partir daí, ela se destaca como a grande intérprete da dupla, tendo gravado 20 canções da parceria. Um dos seus maiores sucessos foi, sem dúvida, “O Bêbado e a Equilibrista”, lançado no LP “Essa Mulher” (1979). Graças ao seu teor, a canção ganha um novo papel, tornando-se o hino-ícone dos exilados pela ditadura, sendo apropriada pelos Movimentos Femininos pela Anistia e Comitês Brasileiros pela Anistia, de vários estados do País. Na verdade, a MPB dos anos 1970 havia sofrido uma significativa mudança na sua forma poética de denúncia e de resistência aos tempos de chumbo em que então vivíamos. Antes, nos agitados anos 60, com o protagonismo de diversos movimentos sociais (Ligas camponesas e a luta pela Reforma Agrária, a militância do Centro Popular de Cultura da UNE, a luta pela nacionalização das companhias de petróleo, o Movimento de Educação de Base da CNBB, o Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos), radicalizados pela resistência ao golpe militar de 1964, aflora o que passou a ser chamado de canção engajada, caracterizando então a MPB da época, com sua temática basicamente social. Em meados da década, o termo engajado dá lugar à canção de protesto, uma provável importação do termo protest songs das canções estadunidenses contra a guerra do Vietnã. Podemos com certeza incluir, sob tal título, canções que denunciavam as condições de vida das classes trabalhadoras das cidades e do campo (show Opinião, com Nara Leão substituída por Maria Bethânia, Zé Keti e João do Vale); ou que denunciavam a situação do País sob a ditadura militar, como a canção paradigmática da era dos festivais, Pra não dizer que não falei das flores, e Disparada, ambas de Geraldo Vandré.

Com a radicalização da oposição armada ao regime militar (guerrilha rural e urbana), é promulgado em dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5, uma espécie de golpe dentro do golpe, instituindo, dentre outras medidas, a perda de mandatos parlamentares, intervenções nos municípios e estados, suspensão das garantias constitucionais, resultando na institucionalização da tortura, usada como política de Estado, em nome da segurança nacional, ocasionando desaparecimentos e assassinatos de opositores do regime. Assim, os anos 70 pós AI-5 fazem recrudescer a censura. Se a liberdade de criação é cerceada, levando vários artistas ao exílio, por outro lado, sua criatividade é desafiada, fazendo-a buscar outras vias nos embates contra o regime ditatorial. Uma das táticas marcantes da época, ao contrário do protesto engajado mais explícito da década anterior, foi a alegorização das letras das canções, de sentido contestatório, aparentemente, menos manifesto. De olho na fresta, mediante expressivas metáforas e linguagem figurada, poetas como Aldir Blanc buscam simular sentidos capazes de passar pelos desvãos da censura e, a um só tempo, expressar as pulsações de resistência aos ares sombrios que nos cobriam. Chico Buarque foi, certamente, um dos autores mais visados, e sua canção Apesar de você (1970), abrindo a denúncia à década obscurantista, tornou-se a obra mais emblemática pela ambivalência e dissimulação de sentidos contra o regime, camuflada por uma sentida linguagem após um rompimento amoroso. Se, por um lado, a canção de Chico abre a década da poética musical alegórica de resistência, os anos 70 são, por outros, encerrados com a canção O Bêbado e a Equilibrista.

Usando imagens e personagens alegóricas, a canção é um manifesto de oposição consciente ao regime militar. A menção ao “luto”, presente no segundo verso da canção, é referência à militância que desaparecera ou fora assassinada em “manchas torturadas”. O “bêbado com chapéu coco” é o artista consciente e irreverente que recusa a se calar, denunciando os crimes da ditadura. A “noite”, imagem recorrente para a época, expressa as próprias trevas do regime que cobrem o Brasil “que sonha com a volta do irmão do Henfil”, o Betinho, dirigente exilado da Ação Popular, movimento da esquerda cristã da época. A canção, alternando a linguagem alegórica com personagens e fatos reais da vida nacional, denuncia um dos crimes mais abjetos e cínicos da ditadura: o assassinato sob tortura do jornalista Wladimir Herzog, no DOI-CODI de SP, em outubro de 1975, sob a alegação de suicídio, fato que se repete em condições idênticas em janeiro de 1976, com o assassinato do metalúrgico Manuel Fiel Filho. O choro das “Marias e Clarices” é o pranto real das viúvas, mães e filhas das vítimas da noite que se abateu “no solo do Brasil”. E segue a canção com o apelo da “esperança”, porque tanto sofrimento não será em vão, “pois a dor assim pungente, não há de ser inutilmente”. Tais versos possuem uma afinidade poética com os versos da canção Apesar de você que, no início da década, nos alertavam: Quando chegar o momento/ Esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros/ Juro!/ Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar.
Se “a esperança equilibrista dança na corda bamba de sombrinha”, ou seja, mesmo correndo riscos, o bêbado, o equilibrista, o/a artista, o/a militante, todos devem acreditar na luta da resistência que segue, pois todos sabem que o show de todo artista tem que continuar…

Seção sindical dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará

Av. da Universidade, 2346 – Benfica – Fortaleza/CE
E-mail: secretaria@adufc.org.br | Telefone: (85) 3066-1818

© 2024. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por: Web-az

© 2024 Kicker. All Rights Reserved.

Sign Up to Our Newsletter

Be the first to know the latest updates

[yikes-mailchimp form="1"]