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MEMÓRIAS DE QUARENTENA 32: OS POVOS INDÍGENAS E O VÍRUS DA INVISIBILIDADE – QUE VEM DE LONGE

Clarissa Tavares (Jornalista, Antropóloga e Indigenista)

Nós, que gostamos de contar o tempo, presumimos que ele nasceu há 67 anos. Ele, que rebentou num mundo outro, descabido de ser calculado, encantou-se nesse amiudar das eras. Levou consigo seu sorriso sempre largo, o orgulho de sua origem e de seu povo, o cuidado pela natureza e o amor desmedido por sua esposa Irekran e suas filhas Maial, O’é e Tânia. Bep’kororoti, seu nome na língua do povo Kayapó, é, para nós, Paulinho Paiakan. Nome de apóstolo, familiar, bíblico como os missionários e agentes do governo gostavam de batizar os índios, Brasil afora. O homem branco tem essa mania de moldar o diferente para o tornar palatável a seus olhos, ouvidos e formas de pensamento. Assim, Kopenawa virou Davi; Ropni Metyktire, Raoni; Korotowï, Taffarel; Wederoowa, Rafael; Bep’kororoti, Paulinho. E incontáveis mais foram batizados e registrados como Carolina, Damião, Marta, Cosme, Arimatéia, Alessandra, Francisco, Liduína, Gersen, Ana. Seguiu fazendo o mesmo ao nominar as etnias indígenas. Logo, conhecemos por Xavante os A’uwe Uptabi, por Txicão os Ikpeng, por Munduruku os Wuy jugu, por Araweté os Bïde, e por aí vai. Ou usou nomes genéricos para sintetizar uma gama de diferentes povos, que, em resposta ao processo colonizatório em algum momento incorporaram e ressignificaram essas denominações como parte de sua identidade étnica, a exemplo dos Tapeba e dos Tapuia.

Nós, que esprememos o tempo para caber em dias, horas, minutos, segundos, também impomos nossa necessidade de controlar as alteridades rotulando-as por nossa própria conta ou tomando emprestadas as denominações dadas por povos rivais, sempre exaltando uma característica desdenhosa. Foi assim que os Mebêngôkre, povo de Paiakan, ficaram conhecidos por Kayapó, denominação que povos vizinhos usavam para se referir “àqueles com aparência de macacos”, motivados, provavelmente, pelo ritual das máscaras Kukoi (macaco prego) (Müller, 2008), ocasião na qual os homens dançam paramentados com o adereço. Os povos indígenas têm vivenciado esse constante avesso, de ser sempre um outro a dizer quem eles são. Testemunhamos a prepotência da cultura dita ocidental se impor de forma violenta e, para esses povos, irrevogável. Ela persegue, cerca, domina, catequiza, espolia, controla, adoece, mata, desmata, polui, destrói, nega e invisibiliza. Faz isso com cada ser particularmente, mas, e o que é mais cruel, coage ao individualismo, à posse, à monetarização, ao modelo cultural dominante essas sociedades que só existem de forma coletiva e culturalmente diferenciada. Vemos o modelo se repetir diante da pandemia de covid-19. Muitos têm denunciado o silenciamento e a invisibilidade dos povos indígenas nesse cenário de horror. Enquanto escrevo esse texto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) contabiliza 7.208 casos de indígenas contaminados com o coronavírus, 110 povos atingidos e 332 óbitos em todo o território nacional, 215 a mais do que registram os dados oficiais do Ministério da Saúde. Não são apenas números, insistem em nos lembrar incessantemente. São jovens, crianças, anciões e lideranças que deixam sua família e seu povo sem chão. Paiakan é mais uma dessas vítimas. Faleceu de covid na manhã de 17 de junho, após oitos dias internado numa Unidade de Terapia Intensiva, no Hospital Regional do Araguaia, município de Redenção, no Pará. Sua partida foi sentida por muitos. A morte de um benadjwyry (como os Kayapó denominam suas lideranças) representa uma perda para todos, indígenas e não indígenas. Vai com ele e com cada liderança tombada – e já se foram Higino Tuyuca, Fausto Mandulão e Bernaldina (Macuxi), Vicente Saw e Amâncio Ikon (Munduruku), Cleilson Anacé, Aldenor Gutchicü (Tikuna), Pascoalina Retari (Xavante), entre muitos outros – um bocado da nossa História. Paiakan foi um ser à frente de seu tempo. Muito jovem aprendeu o português e se sobressaiu na luta pela preservação de seu território. Liderou, junto a outros guerreiros, a expulsão de 5 mil garimpeiros e conquistou, ao lado de Raoni, a demarcação das Terras Indígenas Kayapó e Baú, no Pará. Foi uma voz de destaque contra a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, na década de 1980. Imponente, inteligentíssimo e destemido colocou os povos indígenas do Brasil na pauta internacional. Trouxe os ambientalistas para a defesa das terras indígenas e levou aos indígenas a compreensão da luta ambiental. Despertou a insatisfação da elite agrária e dos desenvolvimentistas. Durante a Conferência Mundial do Clima, a Rio-92, Paikan, um dos nomes mais esperados do evento, foi surpreendido com a capa da edição da revista Veja cujo título trazia: “O Selvagem: cacique-símbolo da pureza ecológica tortura e estupra uma estudante branca, foge em seguida para a sua tribo”. Mais uma vez, o indígena foi rotulado e calculadamente posto no lugar do bárbaro que se opõe ao civilizado. Em seis páginas de reportagem na seção de “Ecologia”, assinada por Paulo Silber e o hoje escritor Laurentino Gomes, Paiakan foi julgado e condenado como autor de tortura e estupro contra a estudante Sílvia Letícia, de 18 anos. Em sequência, foi bombardeado pelos demais veículos de imprensa, numa pesada campanha de desconstrução da sua imagem pública de defensor dos direitos indígenas e do meio ambiente.

Quem ganhou com tudo isso? Certamente, muita gente. O debate em torno de Paiakan passou a questionar a legitimidade da posse dos territórios tradicionais pelos povos indígenas. Por outro lado, a imagem de Paiakan – e dos indígenas em geral – como selvagem e canibal foi a que restou para grande parte da população brasileira. O que essa gente não sabe é que nunca houve provas do estupro anunciado pela Veja e Paikan nunca foi condenado pela Justiça por crime de estupro. Em 1994, ele foi declarado inocente em primeira instância, inclusive da acusação de lesão corporal. Em 2006, foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Pará por lesão corporal. Com isso, Paiakan viveu muitos anos sem sair de sua aldeia. Quando voltou a participar do movimento indígena já não era o jovem de outrora. Sempre sorridente, muito gentil, interessado por contar ao mundo sobre o seu mundo. Tive a sorte e a honra de partilhar com ele e Irekran muitos momentos ao longo de uma década. Sempre que nos despedíamos dizia que, na próxima vez, seria eu a ir visitá-los na aldeia Krenhiyedjá (Rio Vermelho). Não deu tempo. Meu amigo Paiakan é mais uma vítima do coronavírus, mas ele não é um número. Ainda que, ao longo da vida, tenham tentado silenciá-lo e invisibilizá-lo de diferentes maneiras, ele sabia que a luz de sua estrela seria para nós, que o conhecemos e o amamos, farol mesmo após a sua partida.

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