(Foto: Nah Jereissati/ADUFC-S.Sind)
Artigo de opinião da Prof.ª Eliane Barbosa da Conceição, originalmente publicado na edição no do dia 10 de outubro de 2025 do jornal Folha de São Paulo. Eliane é professora de administração pública da UNILAB-CE, doutora em administração (FGV-Eaesp), diretora da Plataforma Justa e segunda-suplente da Diretoria da ADUFC-S.Sind (biênio 2025-2027).
• É fundamental que, no Senado, proposta preserve a espinha dorsal: isenção na base e tributação efetiva do topo
• Há seis décadas o IR cumpre um papel distorcido: protege os ganhos do capital e concentra o peso em quem vive de salário
Foi um compromisso assumido na campanha eleitoral: “incluir os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda”. Até os dois primeiros meses deste ano, porém, muitos duvidavam de que o atual governo ousaria bancar a promessa mais espinhosa.
Com o novo arcabouço fiscal impondo limites à expansão dos serviços públicos e as desigualdades sociais se agravando, cresceu a pressão de movimentos sociais, acadêmicos e organismos internacionais. Ficou evidente que a ausência de uma revisão no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) aprofundaria a penalização da população mais pobre e perpetuaria a face regressiva do sistema tributário.
Nesse contexto, em 18 de março o Executivo enviou ao Congresso o projeto de lei 1.087/2025. A proposta original previa, de um lado, isentar do IRPF rendimentos mensais de até R$ 5.000 e reduzir a carga para faixas intermediárias a partir de R$ 7.000. De outro, instituía um imposto mínimo para os super-ricos, com alíquotas graduais de até 10% sobre rendimentos mensais acima de R$ 50 mil, incluindo lucros e dividendos, isentos desde 1996.
Críticos apontaram que uma alíquota máxima de 10% para rendimentos muito elevados parecia tímida diante do fato de trabalhadores assalariados seguirem pagando entre 7,5% e 27,5%. Mas o simbolismo era relevante: pela primeira vez em meio século, uma iniciativa do Executivo colocava os super-ricos no radar do IRPF, rompendo com a tradição de privilégios que concentra a carga no trabalho e poupa o capital.
No dia 1º de outubro último, a Câmara dos Deputados aprovou uma subemenda substitutiva ao PL 1.087/2025. O texto suavizou parte dos impactos sobre o topo da pirâmide e comprometeu a arrecadação de 2026 a 2028 ao estender a isenção para lucros distribuídos em 2025, mesmo que pagos nos anos seguintes. Retardou, assim, parte dos efeitos, mas não desfigurou por completo a proposta.
O que se manteve já é significativo: a partir de 2026, as rendas mais altas pagarão mais IRPF do que em qualquer momento dos últimos 50 anos. Uma mudança que, se preservada, recoloca o imposto em sintonia com sua função constitucional de promover justiça fiscal.
O pano de fundo histórico ajuda a dimensionar o avanço. Até 1964, quando houve o golpe militar, 60% da arrecadação do IRPF retido na fonte provinham de rendimentos de capital —lucros, dividendos, aplicações financeiras, aluguéis— e apenas 18% do trabalho. Seis anos depois, em 1970, a balança já havia se invertido: metade da arrecadação vinha dos rendimentos do trabalho, e apenas 17% do capital.
Esse padrão não mudou desde então. Até julho de 2025, 66% do total arrecadado pela Receita Federal a título de IRPF recaía sobre rendimentos do trabalho —três quartos deles dos assalariados. Apenas 29% tinham origem em rendimentos de capital.
Ou seja, há seis décadas o Imposto de Renda brasileiro cumpre um papel distorcido: protege sistematicamente os ganhos do capital e concentra o peso em quem vive de salário. Essa distorção não é apenas técnica, mas política: contribui para perpetuar desigualdades e limita a capacidade do Estado de financiar serviços públicos com base em critérios de equidade.
Agora, com a aprovação na Câmara, o projeto segue para o Senado. Sua votação definirá se o Brasil dará um passo consistente rumo à justiça fiscal ou se mais uma oportunidade será perdida. Para tanto, é fundamental que a proposta preserve sua espinha dorsal: isenção na base e tributação efetiva do topo.
A história mostra que, sempre que houve espaço para mudanças progressivas, a reação conservadora tratou de reduzir seu alcance. É o risco que se repete agora. Por isso, a sociedade precisa permanecer atenta e não permitir que uma reforma capaz de reduzir desigualdades seja esvaziada pelas pressões daqueles que sempre se beneficiaram da regressividade tributária. É o momento de o Imposto de Renda retomar sua vocação original: ser um instrumento de arrecadação, sem renunciar à justiça fiscal.


