Roda de conversa da ADUFC recebeu pesquisadores, na última segunda (11), para debater o cinquentenário do golpe chileno (Fotos: Nah Jereissati/ADUFC)
A ADUFC promoveu, na última segunda-feira (11), atividades para lembrar os 50 anos do golpe de Estado no Chile. A ação reivindica o direito à memória, fundamental para a preservação das democracias e para que experiências como essa jamais se repitam. Na sua sede de Fortaleza, o Sindicato promoveu uma roda de conversa à noite com o sociólogo chileno Fernando de la Cuadra, pesquisador e doutor em Ciências Sociais; e o Prof. Clayton Cunha, docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mais cedo, os dois debatedores participaram do Rádio Debate, na Rádio Universitária FM, refletindo sobre o tema, ao lado da diretora de Atividades Científicas e Culturais da ADUFC, Profª. Ana Amélia de Melo, do Deptº. de História da UFC, e com a apresentação da jornalista Carolina Areal.
O pesquisador Fernando de la Cuadra relembrou, cinco décadas depois, o ano do golpe militar no Chile, em 11 de setembro de 1973. “O triunfo da Unidade Popular no 4 de setembro de 1970 deu início à construção de um processo inédito até o momento, quer dizer, a formação de um projeto revolucionário e socialista pela via pacífica, com respeito às instituições democráticas e aos poderes constituídos, que veio a se chamar a via chilena ao socialismo. Um socialismo que, nas palavras do próprio presidente Salvador Allende, era um socialismo de caráter nacional, com sabor a ‘empanadas e vinho tinto’”, contextualiza. À época, o governo popular buscava avançar para uma revolução socialista a partir da institucionalidade, do parlamento, dialogando com um Judiciário de direita e com o apoio das Forças Armadas, salienta o sociólogo. “Pensava-se ainda que as Forças Armadas eram legalistas e republicanas”, completa.
Fernando de la Cuadra explicou que a aliança de partidos que formavam a Unidade Popular de Allende foi crescendo, ao longo dos anos, e obtendo mais apoio, mas ainda não constituía a maioria. Segundo ele, o Chile era um país dividido e contava com uma força de centro, representada pela democracia cristã, que chegou a apoiar no início o governo popular, inclusive com um Estatuto de Garantias Constitucionais. “Eles exigiram isso para apoiar o governo no parlamento, para que o governo respeitasse esse estatuto mínimo de garantias. Mas depois, com a campanha da direita e a extrema direita, da imprensa, dos empresários e grêmios profissionais, com o financiamento e a logística proporcionada pela CIA, a direita colocou o tema de que o governo de Allende saiu-se da Constituição e ganhou o centro para a oposição”, acrescenta. Isso tudo ocorria num contexto de crise econômica, com muitos conflitos, escassez de alimentos e uma direita reacionária e latifundiária tentando destruir o projeto popular e revolucionário.
Para a historiadora Ana Amélia de Melo, o ano de 1973 foi um divisor que transformou o Chile em dois países completamente diferentes. “Eram dois países muito diferentes, dois projetos antagônicos. De um lado, um Chile da Unidade Popular, que apontava para a esperança, inclusive para latino-americanos (brasileiros que estavam vivendo o golpe foram recebidos no Chile, havia esperança na renovação do socialismo), era um país de solidariedade; e, do outro lado, um Chile retrogrado e conservador que insistia em manter seus privilégios”, destaca. “Após o golpe, a ditadura de Pinochet impôs esse modelo neoliberal através de uma violência tremenda”, complementa, reforçando que os atos de extrema violência não se restringiram ao momento em si do golpe de Estado, mas se prolongaram pelos 17 anos do regime militar.
Chile e Brasil convivem com “entulhos” herdados das ditaduras
Ana Amélia também aponta que a ditadura chilena deixou uma herança negativa com a qual o povo chileno convive até os dias atuais. “O regime impôs um modelo econômico que até hoje é tema de debate no Chile, privatizando tudo, as universidades, a previdência, então tudo depende de uma poupança individual. Parecem dois países distintos e que hoje estão nessa batalha. No dia de hoje (11 de setembro), vemos muitas imagens bonitas de flores e de tristeza das pessoas que perderam seus familiares”, ressalta. “Mas também muito ódio de setores da extrema-direita que tentam reafirmar o legado, o que eles consideram legado de Pinochet, as reformas econômicas, e tentam resgatar a imagem de Pinochet como salvador da pátria”, complementa.
Ainda sobre os “entulhos” deixados pela era Pinochet, o Prof. Clayton Cunha aponta como eles refletem na democracia contemporânea. “O regime de Pinochet acabou deixando entulhos autoritários. O processo de redemocratização chileno foi o único em que os militares tiveram ainda mais controle de todo o processo de transição do que o brasileiro. Até hoje estamos pagando o preço disso no Brasil”, disse. Ele se refere ao processo de “constitucionalização do regime”, com uma Constituição chilena promulgada em 1980, e válida até hoje com algumas emendas, proposta como transição do regime militar para a democracia. “Isso manteve o poder das Forças Armadas e da direita chilena e colocou uma série de entraves que os governos posteriores tiveram de lidar. Estabeleceu um suposto mandato constitucional de Pinochet de oito anos, como se não fosse mais ditadura a partir dali, o que não era verdade pois continuava havendo repressão”, detalha.
Clayton lembra que o presidente da República não tinha autonomia para nomear, durante muito tempo, o chefe das Forças Armadas e que o Tribunal Constitucional do Chile tem um poder que nenhum outro tribunal tem. “Ele pode decretar a inconstitucionalidade de leis antes mesmo de ser votada no Congresso e matou várias leis no nascedouro”, cita. Após oito anos do mandato de transição, ocorreu o plebiscito nacional no Chile de 1988, que decidiu pela interrupção total do regime vigente. “A ditadura manipulou o plebiscito, achando que ia ganhar, e surpreendentemente perdeu. Tentou-se construir um mito de que Pinochet era democrata por causa disso, por aceitar a derrota. Mas a verdade é que ele tentou ficar, mas as pressões internacionais eram muito grandes, outros generais roeram a corda, então ele foi forçado a entregar o poder”, relata Clayton.
Na avaliação do pesquisador, o apoio do Estado brasileiro, que instaurara uma ditadura nove anos antes, à ditadura chilena também carece de explicações e debate público. “Seria importante que o governo brasileiro pudesse fazer um pedido formal de desculpas pelo papel que a gente infelizmente representou, não apenas nesta, mas em outras ditaduras, como a da Bolívia”, defende.
A Comissão Chilena de Direitos Humanos estima que 3.200 mil cidadãos morreram, entre 1973 e 1990, pelas mãos de agentes do Estado, dos quais 1.192 seguem desaparecidos. Cerca de 33 mil pessoas foram torturadas e presas por motivos políticos e 200 mil precisaram se exilar durante o regime de repressão liderado por Augusto Pinochet. A preservação da memória histórica é fundamental para a garantia da democracia e dos direitos humanos: para que não se esqueça, para que jamais se repita.