Isaurora Martins (Professora da UEVA)
No início, tudo se fez silêncio na cidade. Com o fluxo de carros e pessoas diminuídos nas ruas, devido à imposição do confinamento e do distanciamento social, outros sons passaram a preencher os dias e os já existentes tornaram-se mais nítidos. O tempo da pandemia, portanto, passou a ser também um tempo de escutas. Escuta do silêncio da cidade, escuta de velhos discos que há tempos eu não tirava das gavetas, escuta dos pássaros que habitam o entorno do meu pedaço de chão e lembram que, numa Fortaleza tão maltratada pelo excesso de concreto e pelo constante corte de árvores, ainda existe uma natureza que pulsa. A vida renova-se todos os dias nas fofocas dos bem-te-vis, na algazarra dos periquitos da Praça da Imprensa, no canto de tantos outros pássaros, dos quais não sei o nome, que habitam as árvores que por aqui ainda resistem, no rasgo dos dois carcarás que caçam os ninhos dos pássaros enquanto observo impotente pelas janelas. Concorrendo com os sons da natureza, tornou-se constante nos meses de abril e maio o som das ambulâncias trazendo o desespero e o medo por nos sabermos no pico da pandemia com hospitais lotados e grande número de óbitos. Junto com a pandemia instalou-se também o pandemônio político causado por um governo negacionista que desdenha dos que perderam a vida e desrespeita a dor dos que perderam seus entes queridos. Pela TV entrava o som do choro e do desespero desses últimos numa constante espetacularização da dor e da morte que os telejornais promovem o dia inteiro todos os dias. À contagem dos mortos pela Covid19, somassem-se as mortes violentas, sobretudo de jovens, que cresceram nas periferias da cidade. Sinal de que os demais problemas sociais que assolam nosso país não abriram espaço para a pandemia passar. Nesse contexto, no primeiro mês, o som das panelas da indignação, encheram as noites de Fortaleza a cada pronunciamento presidencial. Misturado ao som das panelas, os gritos de “Fora Bolsonaro!” e a voz solitária de um vizinho, que da varanda gritava “Mito! Mito!” e “Fora comunistas!”, a me dizer que ele não vive no mesmo país que eu. O passar dos dias e a imposição do fechamento total em maio, o chamado lockdown, foi trazendo outros sons. O das lives musicais, quando artistas impedidos de frequentarem os bailes e bares da vida fazendo resolveram nos presentear com shows virtuais alegrando os corações e salvando a quarentena de muita gente. “Todo artista tem de ir aonde o povo está”, como fala a canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, e eles vieram até as nossas casas por meios diversos. A sambista carioca Teresa Cristina tornou-se a “rainha das lives” fazendo transmissões todas as noites via Instagram para cantar, receber músicos e políticos e comentar os acontecimentos do pandemônio político. Tornou-se voz de resistência e denúncia e incomodou tanto a ponto de quererem silenciá-la. Na minha vizinhança, no período do lockdown, o músico Waldonys enchia o fim das tardes de domingo de música, tocando seu acordeon do alto de um prédio. O som das vozes dos amigos passou a entrar apenas pelo celular ou pelo computador em encontros virtuais tão necessários para lembrar que, apesar de tudo, os afetos não podem ser suspensos. Do mesmo modo, os colegas de trabalho passaram a ser ouvidos apenas virtualmente em reuniões de trabalho e lives acadêmicas. Os sons das homenagens aos que se foram (amigos, parentes e parentes de amigos) também passaram a entrar na casa por meio do computador em missas e cultos virtuais. Outro som que se tornou constante foi o dos carros de som parados na porta dos prédios ou das casas homenageando os aniversariantes com músicas, mensagens e fogos de artifício. Os fogos de artifício que explodiam altas horas da noite no período do lockdown chamavam-se a atenção. Soube depois que eram um sinal de que alguma facção estava conquistando mais um território da cidade. Buzinaços e carreatas também se fizeram ouvir nos primeiros meses. Esses eram os sons dos inconsequentes que bradavam pela reabertura do comércio e das escolas, ignorando os riscos. A luta antirracista se acirrou nos dias de confinamento e os gritos de “vidas negras importam!” ecoaram nas TVs e redes sociais, mostrando a indignação mundial pelo assassinato de George Floyd pelas mãos de um policial branco nos Estados Unidos. No Brasil, esses gritos precisam ecoar todos os dias, pois o que não nos faltam são vidas negras e periféricas sendo ceifadas por policiais. Em maio gritamos por João Pedro (14 anos), em junho por Guilherme (15 anos), para citar os casos mais visíveis, e também por Miguel (5 anos) que não foi morto pela polícia, mas pela negligência da patroa de sua mãe. Em julho gritamos por Mizael (13 anos), assassinado por policiais em sua própria casa. No dia 01 de julho, às 11h, o som de motos buzinando invadiu as janelas do apartamento, corri para olhar e vi o laranja e o vermelho das mochilas dos aplicativos de entrega. Eram os entregadores, trabalhadores precarizados, protestando contra medidas que precarizaram ainda mais essa forma de escravidão moderna travestida de empreendedorismo. Gritavam a palavra de ordem “Sem Exploração!!”, como se já não fossem suficientemente explorados. Com a reabertura, os sons da cidade retornaram abafando os sons da natureza. Já não ouço mais tantas ambulâncias, mas sei que o vírus ainda nos ameaça. Agosto chegou trazendo os ventos fortes, que na minha casa uivam e assoviam. Junto com os ventos, aumentou o crepitar do fogo queimando a Amazônia e o Pantanal. Gritamos virtualmente por nossa natureza enquanto o governo passa sua boiada. Em tempos mais recentes ouvi protestos de donos de escolas e professores reivindicando a reabertura dos estabelecimentos de ensino e até de músicos de banda de forró pedindo a liberação dos shows para que possam trabalhar. Outubro chegou e a população já se comporta como se a pandemia tivesse ido embora. Ouço sons das festas dos vizinhos, dos bares próximos e das campanhas políticas que invadiram as ruas da cidade desde o início de outubro. Além dos sons ao redor, a memória desses tempos vai ser preenchida também pelos sons interiores: da angústia, por me saber privilegiada num momento em que muitos não têm sequer um teto para se proteger do mal que nos ameaça; do medo; da incerteza; da saudade do que fomos (que faz uma barulheira danada) e da esperança, que, entre a pandemia e o pandemônio, é como um pássaro batendo asas aprisionado numa gaiola.